EM EXPOSIÇÃO

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Formas de ver e de apropriar
Um menino encara a câmera e denuncia com seu olhar o arbítrio da situação. Ele é negro e, tomado em primeiro plano, fixa seus olhos nas lentes do fotógrafo. Atrás dele, homens bem-vestidos, com seus ternos e óculos escuros, parecem se esconder da chuva, protegidos que estão por seus guarda-chuvas molhados.
Eles viram seus corpos e olhos como se não existisse um fotógrafo ali, para imortalizá-los em tal situação. O contexto é aquele da inauguração do calçamento da rua Anibal Benévolo, sendo que o prefeito participa da atividade e ganha, como assim convém, a sua centralidade. Já o garoto, alheio à essa que deve ser uma performance do poder, desorganiza o ritual e o que deveriam ser mecanismos apenas ocultos dessa encenação. Ele, mesmo sem querer, denuncia e desmonta o teatro da política.
Outra cena. Três crianças contracenam com uma “jovem árvore”. A imagem foi retirada de uma cerimônia em que justamente se celebrava a semana da árvore, no ano de 1968: em plena Ditadura Militar. Como o fotógrafo não deve ter prestado atenção aos modelos mirins, acabou falhando na direção de arte: enquanto um deles cumpriu com o papel que lhe era demandado, a menina virou para a lateral denotando certa confusão, e o garoto, mais à direita, mostrou-se envergonhado. Todos eles parecem alheios às autoridades postadas logo acima deles.
Essas e outras obras compõem o material coletado e “apropriado” pela artista Maria Vaz, que, ao mexer com a luz da foto, altera conjuntamente a “intenção” da obra. É, assim, um novo sentido que organiza as nossas formas de ver: no individual, mas também no coletivo.
Maria também sublinha a presença daqueles e daquelas que parecem ter nascido para ocupar um segundo plano, ao menos quando pensamos no alcance das fotos do poder. As crianças – que podem até constar das fotos, mas nelas não interferem.
Essas imagens fazem, pois, imenso barulho e sentido nas mãos da pesquisadora e artista visual Maria Vaz. Ela que tem no tema da memória um de seus grandes interesses e inspirações e faz uso de arquivos privados, mas, também, públicos – como é o caso da exposição “Ilustríssimos”. Nela, a fotógrafa revê a presença das crianças captadas em registros visuais pertencentes ao Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, um arquivo administrativo, feito e indexado pela própria administração pública da cidade. Por isso, ele é pretensa e objetivamente ordenado, com apenas o nome de alguma autoridade nomeando o registro.
No entanto, as crianças escapam ao controle, se descolando das marcações rituais. Já Maria Vaz, ao jogar luz sob cenas que deveriam ser apenas subsidiárias, quando não inexistentes, transgride o lugar daquele que é “Ilustre”. Ilustres são as crianças e, de alguma maneira, nós que com elas nos identificamos.
Lilia M. Schwarcz




Ilustríssimos, 2021
Das tantas miradas às mais de 12mil fotografias que guardo do arquivo público de Belo Horizonte, que datam entre as décadas de 1950 e 1970, por muito tempo me chamou atenção um tipo de imagem recorrente: a presença de crianças em acontecimentos políticos, seja na prefeitura ou em eventos externos, em inaugurações, celebrações, visitas, assinaturas de leis, entre outras solenidades. Presença esta que, historicamente, serve bem a uma “humanização” dos senhores governantes, à politicagem.
Esse acervo - não diferente de outros tantos arquivos oficiais - constituído, catalogado e preservado em prol de uma cidade em constante “progresso”, coloca em evidência certos sujeitos e certos acontecimentos. Quase não se vê registros de manifestações populares, e de quase nenhuma se tem registro sem a presença ilustre de algum governante –, sendo predominantes as fotografias de obras públicas e acontecimentos políticos de naturezas diversas.
Chama então atenção a presença que não faz pose, desatenta ou muitas vezes atenta ao que ninguém parece notar, assumidamente – e comicamente – entediada ou curiosa; uma presença que não participa ativamente da politicagem que a faz ilustre. As crianças estão dentro da prefeitura ou em ambientes externos, em inaugurações, celebrações diversas, visitas de obras, assinaturas de leis, entre outras solenidades. Elas não estão no centro da narrativa, como em outros momentos da construção da história do país (como a icônica imagem em que Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do país, carrega no colo a “menina república”, ou a cartilha “Getúlio Vargas, o amigo das crianças”, publicada pelo DIP, em 1940). Talvez por essa mesma razão, por estarem no espaço sem protagonizar a cena, é que ocupam tão bem o papel de romper com a austeridade das solenidades. Elas encaram a câmera, desordenam o que parece estar sob controle.
Decido, então, destacá-las. Destacar essa presença sutil, mas cheia de agência. Destacar, também, a recorrência dessa presença, que é até hoje usada pela propaganda política. O jogo de luz inverte a posição ilustre, ressaltando um jogo outro, que segue em disputa: o político. A iluminação cenográfica enfatiza a teatralidade já característica das cenas registradas, mas as crianças emprestadas não entram no jogo das cerimônias e relações cordiais, não se comportam como os demais e não costumam estar atentas ao que protagoniza os eventos. E é diante de uma fissura no comportamento esperado ao que ordena esse arquivo, que as crianças, despretensiosamente, acusam a sua estrutura teatral.
PUBLICAÇÃO - Prêmio Photothings 2023

Fotos: Maria Vaz
Textos: Ioana Mallo, Maria Vaz e Marly Porto
Projeto gráfico: Alyssa Ohno
Tradução: Cello Sawczuk
Português e inglês
Peso: 0.3 kg
Dimensões: 15 × 19 cm
Encadernação: brochura
40 páginas
Editora: Porto de Cultura
ISBN: 978-65-85769-00-6
1ª Edição
Tiragem: 50 exemplares
Ano: 2023, São Paulo (Brasil)
A série “Ilustríssimos” da fotógrafa mineira Maria Vaz é um trabalho minucioso de longa duração. Depois de copiar mais de 12 mil fotografias do arquivo público de Belo Horizonte, a artista ficou durante 6 anos observando essa enorme coleção de imagens. Ao longo desses anos, o percurso de observação se fez em diferentes ritmos, às vezes sozinha, às vezes em diálogo com outros artistas, primeiro para uma pesquisa específica, depois “apenas” navegando sem rumo. E pelas correntezas, seu olhar sagaz pescou uma linha comum e interessante: imagens de crianças em eventos políticos. Aqueles eventos clássicos como a inauguração de um prédio público, uma assinatura de documento na prefeitura, uma apresentação, um discurso, etc. Eventos protagonizados por homens brancos, quase sem a presença feminina, em ambientes pouco propícios à infância, mas que precisam de um figuração infantil para “humanizar” a mensagem.
E a artista percebeu muito habilmente, neste arquivo positivista, toda a encenação montada em torno das crianças. E em seu processo artístico, inverteu o
protagonismo trazendo à tona os pequenos. Ao fundo, velados, ela apaga os atores da imagem, e em primeiro plano, ressalta as crianças, que ninguém ao redor parece notar. E assim, anos depois, nós dialogamos com essas crianças que agora ganham expressão e vida simplesmente com um jogo de luz. Sem pose, ou encenação, elas aparecem em sua humanidade: desatentas, fazendo careta, enfadadas ou curiosas com algo fora do quadro. Pelo gesto artístico, elas se tornam ilustres para além da propaganda original das imagens, que elas nem faziam ideia.
Maria, artista pesquisadora, se aprofunda na investigação do olhar. As imagens do arquivo fazem parte de um discurso oficial da época divulgado em jornais e revistas, onde a presença das crianças é usada como promoção política atrelada ao futuro da nação. Discurso esse que continua em voga até os dias de hoje, no Brasil e no mundo.
No seu trabalho de resgatar a memória, ela trás a tona novas narrativas e novos significados, e com isso um outro olhar sobre a nossa história. Ela questiona sobre nosso futuro: como queremos enxergar nossas crianças e representá-las? Ao misturar tempos e olhares, realidades e imaginários, Maria quebra com uma prova irrefutável e factual do discurso oficial, e, ao focar na imagem da criança, nos apresenta uma certa liberdade. Do solene, a artista enfoca no lúdico, do controle, no fortuito. Com humor, mas ciente da gravidade, ela coloca em oposição conceitos caros ao patriarcado. E nós, leitores e leitoras, temos a possibilidade de escancara essas fendas abertas pela artista, e construir uma outra memória sobre o papel da infância - nas imagens e na sociedade.
Ioanna Melo
EXPOSIÇÕES:
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2025 - Bienal Sur / La Copia Infiel - Palácio Ferreira, Córdoba (ARG)
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2025 - 5º Prêmio Décio Noviello de Fotografia - Belo Horizonte, MG
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2024 - Salão Anapolino de Artes - Anápoles, GO
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2024 - Salão de Artes de Itajaí, SC
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2023 - Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger - Salvador, BA
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2023 - Festival Photothings - São Paulo, SP
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